Você, leitor, lembra quais eram seus planos aos 18 anos de idade? Planejava cursar uma universidade? Quem sabe procurar um emprego, abrir um negócio ou, até melhor, viajar – conhecer o mundo, antes que a vida real traçasse seu destino?
Independentemente dessas opções, se você é homem sempre existia a pequena possibilidade de que você fosse convocado para prestar um ano de serviço militar nas Forças Armadas Brasileiras – se estivesse destinado para tal ou se tivesse interesse em seguir uma carreira militar mas, em qualquer caso, apenas um percentual muito pequeno de jovens acaba se juntando às fileiras do Exército brasileiro, como acontece até hoje.
Em Israel, ao contrário do Brasil, o significado de se ter 18 anos de idade é completamente diferente de outros países: os jovens que planejam estudar e se formar, viajar ou, simplesmente, passear, têm que esperar algum tempo para realizar seus sonhos, mais precisamente três anos para homens e dois anos para mulheres (lá o serviço militar é obrigatório também para as mulheres), que são os períodos de serviço militar obrigatório, e ele vale para todos, independentemente do status social e localização geográfica de suas residências (as exceções se aplicam apenas aos ortodoxos, que optam pelo estilo de vida religioso extremo e se recusam a servir ao exército, e também aos árabes e outras minorias que são cidadãos israelenses).
Na cultura israelense, o jovem se prepara para o momento em que chegará sua vez de usar um uniforme desde o seu nascimento, falando de maneira abrangente. Essa preparação não é imediata, instantânea, ou seja, não acontece de uma só vez, mas gradualmente e naturalmente se “infiltra” no jovem de forma psicológica, pelo simples fato de ele conviver, diariamente, com soldados espalhados por todos os cantos de Israel realizando a proteção das pessoas e do patrimônio, o que é rotineiro e normal para os padrões de segurança de Israel. A título de exemplificação, é comum observarmos filhos de vizinhos carregando um enorme saco empoeirado nas costas, voltando de uma semana de treinamento, para passar o final de semana em casa.
Ainda, para ilustrar melhor e se ter uma ideia clara do comprometimento do cidadão israelense, um gerente de banco (como qualquer outro tipo de profissional), que serve na reserva do Exército (que também é uma situação obrigatória), uma vez por ano, atua como um simples soldado e recebe ordens de pessoas com patentes superiores que, na vida civil, poderiam estar na fila do seu banco para lhe pedir a aprovação de um empréstimo ou de uma operação financeira qualquer. Até mesmo o seu professor de literatura na escola pode aparecer, de repente, trajando uniforme e ostentando patente que você não sabia que ele tinha e você, subitamente é surpreendido com a descoberta de que ele é um Tenente-Coronel.
No “Purim”, feriado em que as crianças se fantasiam de maneira semelhante ao Carnaval aqui no Brasil, é muito comum os garotos se vestirem de soldados, equipados com uma metralhadora “Uzi” de plástico e o rosto pintado nas cores de camuflagem operacional, como homenagem e gesto de admiração aos soldados corajosos que defendem o país.
Nos jornais e na TV é falado, o tempo todo, sobre o exército, seus integrantes e suas atuações na defesa do país, assim como nas transmissões de rádio, as discussões sobre o exército são eternas. O Exército Israelense está presente no cinema, na literatura, nas músicas, nos ônibus e nos trens, sempre lotados de milhares de soldados – tanto homens quanto mulheres que neles se deslocam através do país. O Exército dispõe de sua própria estação de rádio – muito popular entre os civis, que transmite uma combinação de assuntos políticos e militares, em conjunto com a música. Em suma, massas de soldados estão presentes em todos os aspectos de nossas vidas.
Em um determinado ponto das nossas vidas, tudo se torna algo completamente normal. Cidadãos que se tornaram soldados e voltam a ser civis em um “looping”. Traçando um paralelo, só para ilustrar, esta é uma longa “linha de produção” de soldados: entramos nela quando chega a nossa hora na juventude e saímos quando terminam nossos deveres com a pátria.
Lembro-me, vagamente, de ficar na varanda de nosso apartamento, no quarto andar do nosso edifício, ainda criança, a cantarolar, por longos minutos, para os transeuntes que passavam abaixo de mim: “Meu pai é um soldado… Meu pai é um soldado…” com um orgulho indisfarçável. Esse sentimento aflorou em mim, depois que vi meu pai ir para o serviço militar de reserva pela primeira vez, usando um uniforme e portando seu rifle de combate. Um rifle verdadeiro! Naquela ocasião, em especial, minha mãe teve que me silenciar colocando sua mão sobre minha boca para que eu não incomodasse muito os vizinhos, afinal, o que aconteceria se toda criança que tivesse o pai na reserva decidisse gritar e expressar seu orgulho daquela forma?
A realidade da Guerra bate à nossa porta
Quando eu tinha três anos, estourou a Guerra do “Yom Kippur” que, inicialmente, surpreendeu Israel quando o Egito e a Síria (que buscavam vingança pela dolorosa perda de Israel na Guerra dos Seis Dias em 1967, que acabou triplicando seu território), enviaram seus enormes exércitos pelo deserto do Sinai e Colinas de Golan, respectivamente, para destruir Israel ou, pelo menos, tentar reaver os territórios perdidos na guerra anterior. O momento do ataque não foi acidental, e sim, previamente definido, sabendo-se que grande parte dos moradores do país jejuava e rezava nas sinagogas, como é costume no dia mais sagrado para os judeus. O país transformou-se de um cenário completamente pacífico para o oposto, com cenas de fiéis saindo das sinagogas, entrando em carros ou jipes militares em direção às unidades militares para lá se organizarem para o combate. Lembro-me de que meu tio “Misso”, de quem eu realmente gostava, foi chamado para prestar serviço na fronteira e meu pai foi convocado pela defesa civil para defender nossa cidade de residência como última linha de defesa.
Dessa guerra, apenas me recordo da primeira noite em que os alertas dados pelas sirenes de alarme rasgaram o silêncio do céu noturno e levaram toda a população de Tel Aviv e periferia para os abrigos. Isso aconteceu porque foi recebida uma informação de que caças egípcios estavam atacando Tel Aviv. Desci por uma escada estreita de concreto, levado pelas mãos da minha mãe em direção ao abrigo compartilhado dos moradores, na parte inferior do meu prédio. Eu não entendia nada do que acontecia e porque os adultos estavam tão preocupados. Estava apenas feliz com a oportunidade inesperada de brincar com os primos e vizinhos que lá ficaram conosco muito depois da hora de dormir.
Algum tempo depois, recebemos um aviso de que foi um alarme falso e todos voltamos para casa, pois os aviões egípcios nunca chegaram a ameaçar o centro do país.
Essa guerra causou um trauma nacional e ansiedade existencial que continua até hoje, embora, desde então, mais e mais traumas tenham se juntado, resultado de mais guerras e ondas assassinas de terror que vieram nos anos subsequentes.
Desde jovem me acostumei com o fato de meu pai “sumir” uma vez por ano para o serviço de reserva, durante um mês, e voltar para férias curtas com um rifle, com cheiro de óleo de pólvora e uma mochila cheia de caixas de carne enlatada fechadas. E isso fazia a alegria minha e de minhas irmãs que adorávamos comer aquela carne, não sei por que motivo, porque na verdade, é horrorosa.
Quando eu tinha 12 anos de idade, estourou a primeira guerra no Líbano e meu pai foi designado para uma unidade de purificação de armas químicas e chamado para se reportar à sua unidade. Depois de vários dias sem notícias dele, minha mãe começou a chorar. Abracei-a e disse-lhe “Mãe não se preocupe, disseram no noticiário que os aviões da Força Aérea já estão atacando alvos terroristas, veja que em poucos dias papai voltará para casa”.
Na prática, ele voltou depois de cerca de um mês e meio, com uma barba espessa, mas de bom humor. Recordo-me que ele esvaziou da mochila muitos doces e salgadinhos que todos os soldados receberam durante a guerra como doação dos civis. “Recebemos tantos doces que em um determinado momento começamos a distribuí-los entre os moradores libaneses que estavam à beira das estradas, porque não conseguimos mais sequer olhar para os chocolates de tantos doces que comemos”, disse meu pai, rindo alto. Israel só desocupou o Líbano 18 anos depois de entrar nele – e eu chegaria lá também, algum tempo depois, mas essa é uma história diferente e para ser contada em outra ocasião.
Da escola religiosa para o serviço militar
Cresci em uma família religiosa, onde meu pai era um líder comunitário e foi ele quem fundou uma grande sinagoga em nosso bairro. Estudei em um internato, uma “Yeshiva”, que é uma instituição religiosa superior apenas para meninos, que combina estudos judaicos com assuntos reais. O dia escolar era longo e exaustivo. Começávamos a oração às 7h, depois, era servido o café da manhã. Durante toda a manhã, estudávamos o Talmud – um texto antigo que interpreta o texto bíblico – a “Torá” – sendo a maior parte dele em “Aramaico” misturado com Hebraico antigo. Depois do almoço, estudávamos assuntos modernos e as matérias que todo estudante conhece como inglês, matemática, biologia, física, literatura e até mesmo praticávamos alguns esportes. No final do dia, após o jantar, voltávamos para mais uma hora de estudos talmúdicos, que terminava às 20h. Em seguida, éramos liberados para os nossos quartos, com um tempo livre até que as luzes se apagassem às 23h.
Ao final dos estudos, os graduados tinham a opção de decidir se queriam continuar estudando Talmud, em um nível mais alto, e neste caso teriam uma isenção especial do exército. A outra opção era juntar-se ao exército. Mas a tendência da escola era estimular todos os alunos a preferirem a trajetória em que a religião ocupa um lugar cada vez maior e a manterem um estilo de vida religioso ortodoxo.
Eu não gostava da escola, que era muito conservadora, nem dos estudos religiosos, o que fazia o diretor chamar meu pai com muita frequência para as reprimendas. Na verdade, eu preferia assistir TV e ler livros que não estavam no material de estudo e tratavam de assuntos gerais e história militar, invenções incríveis que melhoraram a vida humana, grandes batalhas que mudaram o curso da história, jornadas fascinantes para descobrir novos lugares e aventuras de arrepiar os cabelos. Não exatamente assuntos que viviam em harmonia com os estudos religiosos. Eu também gostava muito de esportes e representava a escola em competições de corridas longas e até consegui uma autorização especial para praticar karatê duas vezes por semana à noite em um instituto do outro lado da cidade.
Naquela época eu tinha também outra ocupação, como clarinetista em um pequeno grupo de amigos que se formou durante meus estudos e tocava música “chassídica”. A música chassídica é música judaica europeia rítmica, tocada principalmente em eventos comemorativos, como casamentos e “Bar mitzvahs”, mas também nosso grupo era convidado a tocar em cerimônias oficiais semelhantes a uma orquestra ou uma igreja.
Quando se tratava de serviço militar, eu não tinha ambições ou pensamentos sobre o assunto, naquele momento. Ficou claro para mim que eu iria servir e, com boa saúde e boa forma física, as chances eram grandes de que eu seria enviado para uma unidade de combate, mas eu não sabia o que esperar e isso era o suficiente naquele momento.
Aos 16 anos, cada candidato ao serviço militar recebe sua primeira ordem de inscrição, onde são examinados o grau de idoneidade para o serviço e a classificação inicial. Eu morava, na época, em “Bat Yam”, minha cidade natal, uma cidade grande para os padrões normais israelenses e que faz fronteira com a parte sul de Tel Aviv, mas muito pequena em se falando de Brasil. “Bat Yam” é muito conhecida, principalmente, por sua bela praia, que é extensa e bem cuidada.
Ao meu redor, havia muitos amigos que queriam ir para unidades especiais, seguindo os passos de seus pais que participaram de guerras e batalhas famosas (em Israel há muitas batalhas famosas, mas o país nunca ganhou um único jogo na Copa do Mundo). Eles memorizavam os diferentes tipos de armas e até a nomenclatura de suas peças, acessórios e o seu funcionamento, e mostravam seus amplos conhecimentos de diferentes unidades no IDF (Israeli Defense Forces/Forças de Defesa de Israel). Alguns amigos até começaram a se exercitar por conta própria, correndo quilômetros na praia com sacos de areia nas costas. Eu achava aquilo completamente excessivo e desnecessário.
Meu futuro já estava delineado e eu só teria que aguardar.
“O homem é a fonte do poder da IDF. Vê o serviço militar como um valor e um direito e não apenas uma obrigação legal.” ~ Danny Halutz, ex chefe do exército israelense